domingo, 30 de abril de 2017

Abnegação (The Battle Hymn) 1957

Abnegação (The Battle Hymn) marca a incursão de Douglas Sirk nos filmes de guerra, que viria a retomar, embora num outro contexto, em Tempo de Amar, Tempo de Morrer. Trata-se do relato da vida do coronel da Força Aérea Dean Hess. Na altura foi também publicado um livro autobiográfico cujos lucros o autor resolveu doar a instituições de apoio a órfãos de guerra.
Ao contrário de outros filmes, Sirk não se pôde queixar da falta de meios. A Universal possibilitou a utilização do Cinemascope e, embora as filmagens tivessem ocorrido no Arizona e não na Coreia, houve uma preocupação de reproduzir o mais fielmente possível todo o ambiente de guerra, particularmente o modelo de aviões de combate daquela época. O filme marca uma interrupção dos melodramas de Sirk, embora o tema da culpa e da remissão já existente em Sublime Expiação, ressurja neste Battle Hymn. O coronel carrega o fardo de ter bombardeado por engano um orfanato alemão durante a segunda guerra mundial que provocou a morte de 37 crianças. Amargurado, torna-se pastor protestante, mas não consegue acalmar os seus remorsos. Decide então abdicar dessa actividade e aceitar um convite para se tornar instrutor de pilotos no início da guerra da Coreia. Aí vai ser confrontado com o drama das crianças órfãs de guerra, expostas a ataques militares e à fome e por quem ele se vai esforçar com a ajuda de alguns militares e de altruístas coreanos a encontrar um local seguro onde possam estar a salvo. Numa primeira leitura o filme parece ser maniqueísta e até historicamente pouco verdadeiro. Os americanos são apresentados como os bons, os que ajudam desinteressadamente as populações, enquanto que os do Norte são invasores sem escrúpulos que bombardeiam aldeias e não têm piedade por ninguém, seja militar ou civil. Sabemos que as coisas não se passaram assim. Aliás nunca se passam desta forma. Não há inocentes entre beligerantes. Mas uma leitura mais fina (e em Sirk é sempre necessário fazer uma segunda leitura dos seus filmes) a ideia principal que emerge é a da inutilidade da guerra, seja ela qual for e seja quais forem os motivos que a justifiquem. O filme apresenta um contexto moral que ultrapassa o próprio âmbito político em que se possa enquadrar. A guerra é sempre uma barbaridade e as crianças são as suas maiores vítimas. Não há aqui nenhum resquício de lamechiche, até porque o filme não explora de forma intensiva esse aspecto. Os chamados danos colaterais que matam muitos inocentes que nada têm a ver com o conflito (e temos inúmeros exemplos recentes) são encarados pelos responsáveis militares como um mal menor e inevitável. Aliás há um diálogo muito significativo entre Hess e um seu velho companheiro da segunda guerra mundial, com o coronel ainda a expiar a culpa do seu erro, a negar a inevitabilidade e a menorização dos chamados danos colaterais. 
Parece que Sirk não ficou totalmente satisfeito com os resultados do filme. No seu início há uma apresentação da figura de Hess feita por outro militar que foi inserida à sua revelia. O filme apresenta sensíveis mudanças em relação ao livro, a mais importante das quais é a transformação da protectora das crianças de uma mulher de meia idade, numa jovem muito atraente a ponto de chegarmos a pensar que haverá um envolvimento entre ela e o coronel, o que nunca chega a suceder, para descanso da sagrada instituição chamada matrimónio. Parece que Sirk não gostou especialmente dessas mudanças, mas o sistema de Hollywood é mesmo assim, até para cineastas que sempre tiveram fama de serem ciosos da sua independência, como é o seu caso. Em resumo, Battle Hymn não está entre os melhores filmes de Sirk, mas, ainda assim, é muito interessante. 
* Texto de Jorge Saraiva

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sábado, 29 de abril de 2017

Escrito no Vento (Written on Wind) 1956

Escrito No Vento é considerado por muitos sirkianos, entre os quais eu me incluo, como a quintessência do melodrama e provavelmente o seu melhor filme de sempre. Claro que esta designação é sempre discutível, porque Sirk tem outros grandes filmes no mesmo período, tudo dependendo do gosto subjectivo de cada espectador.
É a sexta colaboração entre Sirk e Rock Hudson, num elenco absolutamente fabuloso que contaria com Robert Stacke e Dorothy Malone que voltariam a participar em filmes posteriores e uma inusitada presença de Lauren Bacall. Embora Sirk fosse um perfeccionista e um maníaco dos pormenores, não há nenhum filme que o expresse de forma tão esplendorosa como Escrito No Vento. Nunca os cenários pareceram tão exagerados, como uma espécie de distorção da realidade. Nunca a utilização da cor, ora forte e carregada, ora em tons desmaiados, mas quase sempre antinatural, pareceu tão apropriada, como neste filme. Nunca a banda sonora, a cargo de Frank Skinner e a canção que abre o filme e interpretada pelo grupo vocal Four Aces (que quase resume todo o enredo, ou, pelo menos, antevê-o) está tão bem integrada. E se o argumento, baseado numa novela de Robert Wilder de 1945, parece relativamente banal, com histórias de amores cruzados, uma visão maniqueísta entre os bons, justos e honestos e os maus, depravados e inúteis, essa simplicidade é apenas aparente. Análises posteriores, vêem em Sirk uma subliminar crítica `a sociedade americana e à burguesia que vive de forma opulenta esbanjando dinheiro. Nesse aspecto, Escrito No Vento é provavelmente o filme politicamente mais corrosivo e subversivo do cineasta alemão. Mas, sempre de uma forma subtil, o que levou um crítico a dizer que os filmes de Sirk são mais complexos do que os de Ingmar Bergman, uma vez que os melodramas servem muitas vezes como pretextos para expressar um aguçado sentido crítico, muitas vezes de difícil percepção para o espectador comum. Houve quem visse em Escrito No Vento uma antecipação das séries de grande sucesso como Dallas. Mas, para além da localização texana e da descrição da burguesia, há em Sirk uma subtileza e uma profundidade que a soap opera dos anos 70 nunca atingiu. A cena final, considerada uma das mais emblemáticas de toda a obra de Russell, com Lauren Bacall (Lucy) de vestido cor de rosa, a abandonar a mansão num carro na companhia de Rock Hudson (Mitch), enquanto Dorothy Malone (Marylee) os observa de uma janela entre a inveja e o desespero, é absolutamente deslumbrante.
Quando se pensa na idade de ouro do cinema americano, associamos de imediato nomes como Ford, Capra, Preminger, Mankiewicz e mais alguns. mas não podemos deixar de pensar em Douglas Sirk e neste maravilhoso Escrito No Vento.
* Texto de Jorge Saraiva.

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quinta-feira, 27 de abril de 2017

O Rebelde da Irlanda (Captain Lightfoot) 1955

Já no auge dos seus melodramas que o tornariam famoso, entre Tudo O Que O Céu Permite e Escrito No Vento, Douglas Sirk teve tempo para explorar um género a que poucas vezes se dedicou: o filme de aventuras. O Rebelde da Irlanda (Captain Lightfoot) parte da adaptação do romance homónimo de W.R. Burnett, escrito em 1954. Com o seu perfeccionismo habitual, as filmagens foram rodadas na própria Irlanda.
Há filmes de aventuras para todos os gostos. Os de Sirk nunca são inocentes, como aliás nenhum filme seu, em qualquer género, o é. A trama passa-se no início do século XIX (1815) e centra-se na luta dos irlandeses patriotas contra a ocupação colonial inglesa que foi particularmente odiosa. Nesse sentido, este é um dos filmes com uma mensagem política mais clara e transparente de toda a sua filmografia. Aparentemente perdida no meio das aventuras e de um romance de amor, fica a imagem da corrupção e prepotência das autoridades inglesas e o seu conluio com os «traidores» irlandeses que o servem. Ou seja, num período em que estes temas raramente eram abordados, o filme coloca-se claramente ao lado da causa irlandesa de expulsar os opressores ingleses da sua pátria. Quando comparado com filmes posteriores que abordam o mesmo tema, como Ventos de Liberdade de Ken Loach, ou Michael Collins de Neil Jordan, em nada fica a perder em relação às questões de conteúdo e suplanta-os largamente do ponto de vista estético. Mais do que uma consciência política aprofundada, ressalta-se o sentimento de combate à injustiça ainda que de forma pouco ortodoxa. Há aqui uma ironia particular: o aproveitamento da lendária figura de Robin dos Bosques (uma espécie de herói inglês) para criar uma resposta irlandesa. O protagonista, Michael Martin (mais uma vez interpretado por Rock Hudson numa das suas últimas colaborações com Sirk) é um pequeno assaltante de aldeia que rouba aos ricos para que o dinheiro seja entregue a uma associação patriótica que o distribuirá pelos camponeses, oprimidos com os impostos da coroa inglesa. Jovem atrevido e pouco dado a subtilezas tácticas, pretende mais acção do que palavras contra a vontade do presidente da associação. Decide então ir para Dublin depois de um ataque mais ousado que coloca a sua cabeça a prémio. Ajudado por um falso padre, que mais não é do que o célebre capitão Thunderbolt, o mítico líder dos resistentes irlandeses. A cumplicidade entre ambos é imediata: querem mais acção e menos palavras, nem que para isso a referida acção passe por formas pouco ortodoxas, designadamente a exploração de um casino frequentado pelas autoridades inglesas e pelos privilegiados irlandeses que o servem, para distribuir os ganhos pelos mais pobres. Há alguns pontos fracos no argumento que não sei se já existem no romance original, uma vez que não o li. E esses pontos prendem-se com a ideia de metamorfose das personagens, que é um dos elementos centrais dos filmes de Sirk: como é que um jovem camponês se torna rapidamente num líder tão desenvolto e firme assumindo responsabilidades na altura em que o seu chefe é ferido? Como é que o líder da associação patriótica da sua aldeia, passa de um conciliador a traidor e de traidor a um corajoso patriota que arrisca a sua própria vida? 
Alguém disse um dia que Douglas Sirk é mais complexo do que Ingmar Bergman. Não sei se concordo, mas percebo as justificações: os filmes de Bergman são naturalmente complexos, enquanto que os filmes de Sirk são aparentemente simples. Mas por detrás dessa pseudo simplicidade, descobre-se um cineasta que sabe muito bem o que quer e como administrar as doses de veneno necessárias. Não é por acaso que lhe chamaram o realizador esquerdista. E este é um dos filmes que mais contribuiu para essa reputação. 
* Texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Tudo O Que O Céu Permite (All That Heaven Allows) 1955

Tudo O Que O Céu Permite (All That Heaven Allows) foi realizado no período de maior apogeu da capacidade criativa de Sirk. Alguns críticos consideram-no o seu melhor filme de sempre, mas outros inclinam-se para Escrito No Vento ou Imitação de Vida. É natural esta divisão de opiniões. Sirk não foi um cineasta de uma obra só, ou, pelo menos, de ter um filme que claramente se distinga dos restantes.
Como quase sempre sucedeu no cinema americano, Douglas Sirk foi pioneiro na introdução de temas sociais incómodos na estrutura melodramática, numa acção deliberada que só encontra paralelismo na obra de Frank Capra, embora, no seu caso, ainda de forma mais incisiva. A subversão do melodrama, não se faz pela transformação da ideia original de argumento que se baseia numa história de amor, mas pela adição de novos temas, por vezes de forma aparentemente lateral, mas que acabam por ser decisivos na contextualização global do filme. Por isso, não é de estranhar que no meio de amores desavindos surjam temas como o racismo, ou a decadência moral da burguesia. Penso que nunca ninguém o fez de forma tão incisiva e metodicamente elaborada como Douglas Sirk. Estes temas colam-se ao argumento melodramático como uma segunda pele e tornam-se dele totalmente indissociáveis. Neste filme é a paixão inusitada e «contranatura» entre uma mulher burguesa (Jane Wyman) e o seu jardineiro (Rock Hudson). Todo o desenvolvimento do enredo gira em torno do preconceito social. Como é possível numa América tão ciosa dos seus valores morais conservadores (muito mais, obviamente nos anos 50 do que na actualidade) haver um relacionamento amoroso marcado por um tal desnível social? Sirk representa esse preconceito através da reprovação e das pressões dos círculos sociais e familiares da mulher que levam a que a história se complexifique, com sucessivas reviravoltas, até ter um final feliz. De facto, o amor nunca é simples e Douglas Sirk está aqui para o demonstrar de forma absolutamente evidente. Em termos técnicos o filme é absolutamente irrepreensível, com aquele tipo de realização a um tempo artificial e discreto, com uma utilização absolutamente maravilhosa da cor e com uma notável direcção de actores, com destaque para o então já imprescindível Rock Hudson e para Jane Wyman. T
udo O Que O Céu Permite foi a minha porta de entrada no universo particular de Sirk. Sendo eu, um admirador da obra de Todd Haynes e, em particular de Longe do Paraíso (Far From Heaven), li uma entrevista deste cineasta em que afirmava que este filme era uma homenagem declarada ao cinema de Sirk, que, segundo ele, não tinha sido suficientemente valorizado. Os pontos de contacto entre os dois filmes são evidentes: quer a mesma localização no tempo (anos 50), quer a mesma denúncia de uma América conservadora e preconceituosa. Mas também se revela no relacionamento entre uma mulher burguesa e o seu jardineiro e igualmente no mesmo tipo de planos e de utilização da cor. O filme de Haynes acrescenta-lhe alguns pormenores que radicalizam a situação: a homossexualidade do marido que conduz à separação do casal e o facto de o jardineiro ser negro o que pode ser entendido como uma referência a Imitação de Vida, o derradeiro filme de Sirk. Em Tudo O Que O Céu Permite, há um happy end que não existe em Longe do Paraíso, onde o racismo é mais forte do que o amor. Mas, foi o entusiasmo com que Haynes se referiu ao filme do cineasta alemão, que me despertou a curiosidade em vê-lo e a entrar no maravilhoso universo cinematográfico de Douglas Sirk. 
* Texto de Jorge Saraiva.

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terça-feira, 25 de abril de 2017

A Vida não Pára (There`s Always Tomorrow) 1955

A Vida Não Pára (There`s Always Tomorrow) baseia-se numa novela de Ursula Parrot, e adaptada ao cinema por Bernard C. Schoenfeld. Já tinha havido uma primeira versão realizada por Edward Sloman em 1934. Curiosamente, tratando-se de um melodrama e no auge dos seus filmes coloridos, Douglas Sirk regressa ao preto e branco. O filme marca também o reencontro entre o realizador e a actriz Barbara Stanwyck depois de dois anos antes esta ter participado em All I Desire.
There`s Always Tomorrow é um dos filmes de Sirk susceptível de se prestar a um maior número de interpretações. Não por nenhum tipo de hermetismo particular, mas devido à sua ambiguidade. Enquanto o produtor Ross Hunter considerava o filme como uma história de amor, Sirk achava-o uma história de probabilidades. O que aconteceria se tivesse menos 20 anos e pudesse ter seguido um caminho diferente? Na base da sua interpretação centra-se a figura de Clifford Groves, um homem de negócios bem sucedido e com uma vida familiar aparentemente estável, casado e com três filhos. Apesar da tranquilidade da sua vida, a sua insatisfação cresce à medida que percebe que a sua esposa se acostumou a uma vida rotineira e sem sobressaltos, concentrada exclusivamente na sua vida doméstica e na educação dos filhos e que transfere para estes, o afecto que anteriormente dedicava ao seu marido. O aparecimento inesperado de uma antiga namorada de há 20 anos vem transformar a sua vida morna. O melhor do filme consiste na relação que se vai estabelecendo entre os dois. Numa primeira fase, ele mostra-se relutante enquanto ela insiste nas memórias comuns, antes de se radicar em Nova Iorque onde se tornou uma estilista de sucesso. A partir de um encontro fortuito numa estância de férias, as intenções de ambos começam a inverter-se: ele aproxima-se de forma directamente proporcional ao descontentamento com a sua vida familiar, enquanto ela tende a afastar-se com receio de alterar a sua vida e, sobretudo, de levar à separação da família. É aqui que o filme resvala para um certo moralismo conservador, típico no cinema e na sociedade americanas dos anos 50, mas que os melodramas de Sirk quase sempre procuraram evitar. Perante a crescente desconfiança e hostilidade dos filhos, ela vai renunciar ao seu antigo amor e afastar-se. Ele vai insistir até aos limites, mas perante a irredutibilidade dela acaba por se resignar. Assim, há um casamento que é salvo pela existência de uma família, como é muito bem expresso no diálogo de despedida entre ambos: «há 20 anos fugi para não enfrentar a realidade; agora fujo porque já sei encarar a realidade». Esta é a ambiguidade de There`s Always Tomorrow. Nenhum deles fica feliz, mas ambos acham que é a solução melhor: o sacrifício em nome de valores mais elevados. Ela voltará para a sua vida bem sucedida, mas solitária em Nova Iorque; ele ficará em Los Angeles sublimando na sua empresa de produção de brinquedos, as frustrações do desconsolo da sua vida familiar. Para a nossa sociedade, onde este tipo de renúncias já não existe e em que as pessoas decidem as suas vidas em função da sua própria felicidade, este tipo de valores e de práticas é estranha. Daí o filme resvalar para um certo moralismo conservador a que já me referi. 
Parece que Sirk projectava um final bastante mais amargo do que aquele que o filme nos trouxe. Mais uma vez foi forçado a conformar-se a uma certa felicidade resignada por parte do protagonista principal. Não sendo dos meus melodramas favoritos do cineasta alemão, merece, ainda assim, um visionamento atento, até pela detecção das ambiguidades que revela. 
* Texto de Jorge Saraiva.

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segunda-feira, 24 de abril de 2017

O Sinal do Pagão (Sign of the Pagan) 1954

Com O Sinal do Pagão (Sign of the Pagan), Douglas Sirk resolve fazer uma incursão numa nova área: o filme histórico de cariz épico baseado no antigo Império Romano. Não sei se esta opção se deve à vontade deliberada do cineasta, ou se apenas à necessidade de cumprir contratos. Nicholas Ray, por exemplo, assinou muitos filmes que ele próprio considerou menores, porque nem sempre um cineasta tinha autonomia para fazer o que quisesse. 
 Sign of the Pagan adapta uma história de Oscar Rodney e passa-se no século V, numa altura em que o Império Romano estava dividido entre Ocidente (sediado em Roma) e Oriente (em Constantinopla). Aborda os sinais crescentes de desunião com Theodosius no Oriente a querer uma autonomia cada vez maior face a Valentinianus, o imperador romano. Embora unidos pela mesma fé cristã, declarada religião oficial no século anterior por Constantino, a desunião vai crescer. Essa fractura vai ser aproveitada por Atila o poderoso rei dos Hunos que procura unir os diversos povos bárbaros para poderem marchar contra Roma, em primeiro lugar e, em seguida, para Constantinopla. Um dos poucos pontos interessantes do filme é a caracterização da figura de Atila, aqui desempenhada por Jack Palance. Ao contrário das visões mais reducionistas da História, Atila surge como um homem inteligente, capaz de fazer compromissos quando acha que os mesmos são necessários para alcançar os seus objectivos. Claro que impera nele um tremendo desejo de vingança, pelo que ele e o seu povo sofreram às mãos do Império Romano, mas embora bastante supersticioso, procura evitar que a guerra contra Roma se transforme num conflito religioso. Em contrapartida, aquela que deveria ser a personagem principal do filme, Martianus, desempenhada pelo actor Jeff Chandler, é apagada e previsível e a performance do actor também não ajuda. Descontando as inúmera imprecisões históricas (por exemplo Martianus que chegou a imperador do Oriente foi um isolacionista, ao contrário do que surge no argumento onde se afirma como um paladino da defesa e unidade do império romano), o argumento é, na generalidade , fraco e demasiado previsível, o que não deixa de surpreender em Sirk, que nos habituou a lidar com histórias bastante mais complexas e com personagens cujas interacções se propiciam a variadas interpretações. Aqui, exceptuando a figura de Atila, tudo o mais é de um simplismo que chega a roçar o confrangedor, incluindo uma aparição do papa Leão e a conversão de filha de Atila que parece tão forçada, que é pouco credível. Por outro lado, se a realização de Sirk é segura, sem erros e com uma boa utilização da cor, o baixo orçamento cria uma ideia de pobreza de meios que se torna desconfortável, quando comparada com outras grandes sagas históricas com Quo Vadis, Ben-Hur ou Cleópatra, isto para apenas nos situarmos apenas no período romano. Sirk tenta contornar a situação filmando muito em interiores e em locais isolados e durante a noite, procurando retirar o tom épico que estes filmes normalmente têm e que são o grande chamariz para o público. Mas quando se vê forçado a filmar a batalha final que opõe romanos e hunos, o resultado é quase indigente. Uma cena rotineira e quase sem arrebatamento. Decididamente, os filmes épicos não seriam propriamente o campo onde Sirk melhor se expressava. 
Pelo que acima ficou escrito, Sign of the Pagan não é um filme particularmente entusiasmante. Disputa com Taga, Son of Cochise, o pouco honroso galardão de ser o pior de todo este ciclo. Curiosamente duas obras atípicas, uma sobre o Império Romano e outra sobre índios americanos. Mas não é caso para desesperar. O melhor de Sirk seria feito nos últimos 5 anos da sua carreira. 
* Texto de Jorge Saraiva.

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domingo, 23 de abril de 2017

Sublime Expiação (Magnificent Obsession) 1954

Sublime Expiação (Magnificent Obsession) é um remake do filme original de John Stahl feito em 1935 e baseado na novela homónima de Lloyd C. Douglas. Tanto o argumento como desenvolvimento da estrutura narrativa são bastante diferentes, uma vez que Sirk não acreditava na virtualidade cinematográfica do romance. A realização é igualmente substancialmente distinta, sobretudo pela introdução da cor que, obviamente não, existia na versão inicial. 
Sublime Expiação tem todos os ingredientes para ser um melodrama de sucesso. É um clássico filme dos anos 50, com uma história de amor, desencontro e redenção. Marca igualmente a terceira colaboração entre Sirk e Rock Hudson (que seria o seu actor emblemático durante grande parte dos seus filmes dessa década, aqui contracenando com Jane Wyman. Se Sublime Expiação tem todos os condimentos para se tornar num melodrama clássico (e é-o em grande medida), há sempre o toque especial com que Sirk impregna a generalidade dos seus filmes: a utilização profusa e quase desmesurada da cor, o artificialismo de alguns cenários e a sinuosidade das personagens. É certo que ao falarmos de redenção descobrimos uma personagem que é indirectamente responsável pela morte de quem o quis salvar, que provoca a cegueira da sua jovem viúva e que finalmente decide arrepiar caminho da sua vida de playboy rico e desdenhoso. A relação com a cegueira da protagonista marca um subtil desvio de Sirk para temas de cariz social (neste caso a deficiência visual) que se aprofundaria nos seus filmes posteriores, particularmente em Imitação de Vida. Mas a irrealidade do argumento (ao que parece Sirk confessou em entrevistas já depois da sua retirada, que detestava o livro), onde as personagens vão mudando, por vezes de forma radical e dramática, assim como o improvável final, contribuem para a grandeza do filme. De facto, o cinema em geral e o melodrama em particular, é um universo feito à medida dos nossos sonhos, onde o improvável é possível. De resto tudo no filme é perfeito; a direcção de actores, com destaque para Jane Wyman que foi nomeada para o Óscar de melhor actriz, a sequência da acção, que começando de forma muito rápida, vai-se progressivamente tornando mais lenta, à medida que as a trama se densifica, a integração da música de Frank Skinner e, sobretudo a excepcional fotografia a cargo de Russell Metty que mais tarde trabalharia em Spartacus de Stanley Kubrick. Acima de tudo ressalta o extremo cuidado visual e o controlo de todos os pormenores, mas isso é a imagem de marca de Douglas Sirk. 
 É o primeiro melodrama de Sirk que teve um forte impacto popular. Embora não seja um dos meus filmes favoritos do cineasta, reconheço que a partir deste momento, Sirk obteve aquilo que raros conseguem: fazer vingar as suas próprias ideias no coração da indústria de Hollywood sem fazer quaisquer cedências que desvirtuem a sua liberdade criativa.
* Texto de Jorge Saraiva.

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sexta-feira, 21 de abril de 2017

Herança de Honra (Taza, Son of Cochise) 1954

1954 foi um ano muito prolífero para Douglas Sirk. Ficará marcado por Sublime Expiação um dos seus melodramas mais famosos e populares, mas também por outros dois filmes que se afastariam totalmente do género que o tornou mais conhecido: Herança de Honra e o Sinal do Pagão. 
Herança de Honra (Taza Son of Cochise) é a uma incursão de Douglas Sirk no western, ou pelo menos num determinado tipo de western. Parte de um argumento de Gerald Drayson Adams e situa-se no final do século XIX. O curioso deste filme, é que os índios são o centro da atenção, o que não é nada comum nos westerns. Mais ainda, há uma tentativa de fazer um filme a partir deles e não apresentá-los como era costume como os maus da fita. Provavelmente, teríamos que recuar a John Ford para encontrarmos uma tentativa de compreensão similar da cultura e da forma de vida dos índios. Esse é o aspecto mais interessante seja conseguido. Herança de Honra é, nos seus pressupostos ideológicos, o oposto de O Rebelde da Irlanda. Neste filme, havia uma apologia de uma via sem concessões face ao domínio colonial britânico, em detrimento de uma outra mais conciliatória. Agora estamos numa situação inversa. O velho chefe dos Chiricauas assina um tratado de paz com os brancos e pede aos seus dois filhos que o honrem e que mantenham esse acordo, bem como a unidade dos Apaches. Um dos filhos, que será o novo chefe, decide ser fiel ao testamento paterno, mas o outro, que aliás lhe disputa a namorada, pretende voltar à guerra contra os colonizadores. Todo o filme se desenvolve nestas duas concepções, envolvendo sobretudo Taza e Gerónimo, o mítico líder índio rebelde. O argumento é sempre parcial, claramente desfavorável aos mais radicais que são apresentados como pérfidos, belicistas e traidores. O filme torna-se profundamente maniqueísta que é um dos seus aspectos mais frágeis. Taza, o índio bom, revolta-se contra os brancos porque estes querem aplicar a justiça federal à nação apache, mas acaba por aceitar as suas decisões e conformar-se ao acantonamento numa reserva e a funcionar como uma espécie de polícia de controlo dos movimentos da sua própria população vestindo uniformes cedidos pelo exército americano. Os maus, pelo contrário, não querem saber de acordos, apenas querem atacar à traição e são intolerantes para com o inimigo. Não cabe aqui discutir questões de natureza política e abordar quem tem razão, mas o destino posterior dos índios americanos, dá bastante que pensar. Mas o que se impõe em Herança de Honra são as questões de natureza moral, ou seja, o cumprimento escrupuloso dos princípios acordados. Embora procure apresentar os índios como um povo com uma identidade própria, cai nos estereótipos dos filmes do género, muito comuns na época com particular relevo para um etnocentrismo mal disfarçado. Claro que se contextualizarmos o filme rodado há mais de 50 anos, conclui-se que provavelmente até seriam concepções avançadas para a época. No entanto, não deixa de ser um fraco consolo. Sirk tenta ser o mais rigoroso possível como é seu hábito, com a utilização artificial da cor e os cenários e adereços cuidadosos. Mas, como é óbvio, nenhum dos actores principais é índio, a começar pelo protagonista principal, o inevitável Rock Hudson. 
Não há grande volta a dar. Herança de Honra, apesar de alguns méritos, é um dos menos conseguidos filmes de Douglas Sirk. Os incondicionais do cineasta alemão, não o vão perder, os outros poderão vê-lo por mera curiosidade.
* Texto de Jorge Saraiva.

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quinta-feira, 20 de abril de 2017

Desejo de Mulher (All I Desire) 1953

Desejo de Mulher (All I Desire) é o último dos filmes a preto e branco de Douglas Sirk, com excepção de Tarnished Angels, mas, neste caso, por vontade expressa do realizador. Baseia-se no romance Stopover de Carol Brink que tinha sido editado em 1951. Embora não seja considerado como um dos grandes melodramas do cineasta alemão (muito provavelmente pela ausência de cor), deve ser incluído entre os filmes do género.
Trata-se de uma obra sobre pecado, expiação e redenção, passada numa pequena cidade do Wisconsin no início do século passado. Uma mulher, casada e com três filhos, comete adultério e o peso das críticas e dos falatórios de uma pequena cidade, levam-na a abandoná-la (bem como à sua família) e a tentar a sua sorte como actriz de teatro em Nova Iorque. A sua carreira é errática, uma vez que depois de ter ganho um grande prestígio se encontra agora em situação preclitante. Recebe então uma carta de uma das suas filhas para ir assistir a uma representação escolar em que é a principal protagonista, na sua cidade natal. Não resistindo ao convite, regressa dez anos depois de ter partido. O seu regresso deve ser entendido como uma espécie de expiação. Movida pelos remorsos, a actriz vai ser colocada perante dilemas sobre a sua decisão tomada dez anos antes. Mais uma vez, a metamorfose das personagens ao longo do filme desempenha um papel absolutamente crucial. Aparecendo de surpresa vai provocar reacções desencontradas no seio familiar. A filha que quer ser actriz e a criada recebem-na de forma calorosa; o filho mais novo, que mal a conhece, olha-a com estranheza; o marido abandonado e traído e a filha mais velha recebem-na de forma fria e hostil. Este jogo de aproximação, muitas vezes inconsciente, entre os familiares é o aspecto mais sedutor e comovente de All I Desire. Desenrolando-se de forma extremamente concisa, evitando deambulações que desviem o foco da questão principal, toda redenção é um processo tortuoso e contraditório. É aí que Sirk enfatiza as questões da moral dominante e da hipocrisia. Enquanto toda a sociedade aplaude aquela que julgam tratar-se de uma grande estrela do teatro e sentem orgulho por serem sua conterrânea, ao mesmo tempo criticam o seu comportamento anterior e o adiamento da sua partida. Quando a ocasião se proporciona, aí estão eles prontos a reprovar e a condenar. Mas a redenção passa pela paulatina modificação de sentimentos e vontades. Mais do que arrependida, a actriz sente um profundo desejo de regresso às origens, à vida e à família que perdeu. E esse sentimento estende-se à própria família, designadamente à personagem do marido, que o vai a querer enfrentar de forma decidida a possível reprovação social de que vai ser alvo. Barbara Stanwyck, que foi uma das grandes divas do cinema de Hollywood nas décadas anteriores aparece aqui mais madura a ter um desempenho absolutamente notável. 
All I Desire não é considerado como dos melhores filmes de Sirk. Talvez os que assim consideram tenham razão. Não tenho a certeza. Do que eu não tenho dúvidas é de que se trata de um filme profundamente comovente. Um daqueles que nos faz chegar as lágrimas olhos, não por lamechice, mas por pura emoção. E se este é um filme menor quando comparado com outros filmes do realizador, abençoado seja quem faz destes filmes menores... 
* Texto de Jorge Saraiva.

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quarta-feira, 19 de abril de 2017

Viram a Minha Noiva? (Has Anybody Seen My Gal) 1952

Viram A Minha Noiva? (Has Anybody Seen My Gal) deve ser visto como um complemento de No Room For Groom. Ambos foram feitos no mesmo ano, são comédias e têm pontos comuns no argumento. No entanto, este segundo filme apresenta uma diferença fundamental: a cor. E quando Sirk começou a utilizar a cor, o cinema nunca mais foi o mesmo. 
Has Anybody Seen My Gal parte de um romance da escritora Eleanore Porter, adaptado ao cinema por Joseph Hoffman. A ideia central do filme é muito simples: um dos maiores milionários de Nova Iorque, sem descendentes, para além de parentes afastados, resolve doar a totalidade dos seus imensos bens à família de uma antiga paixão sua, entretanto falecida. Contra os conselhos médicos consegue saber onde é que essa família vive e resolve investigar se eles são merecedores de receberem essa opulenta herança. Sob nome falso e ocultando as suas intenções, consegue hospedar-se na respectiva casa e passa a viver o quotidiano de uma família comum com todos os seus problemas, ambições e frustrações. Retrata-se de novo a dicotomia entre dinheiro e felicidade que já aparecia no filme anterior, aqui numa leitura menos política, mas igualmente incisiva. Uma família que, embora vivendo problemas financeiros graves e abdicando de luxos a que ele sempre esteve habituado, mantém-se coesa e feliz. Tal como em No Room For Groom, Sirk opta por filmar histórias, onde os valores materiais são relegados para um plano secundário, para emergir um objectivo mais elevado, em que um modo de vida simples e com afectos partilhados, se sobrepõe ao dinheiro. Mais uma vez, estamos em presença da velha disputa entre o que se tem e o que se é. Quando o velho milionário pretende intervir ajudando disfarçadamente a família a resolver os seus problemas financeiros, destrói a sua unidade e felicidade. As pessoas tornam-se vis, vaidosas e mesquinhas. Ele que tinha experimentado inusitados prazeres na companhia daquela família e num modo de vida simples que incluiu o seu trabalho num bar, contribuía agora, ainda que de forma involuntária, para a sua desunião. Pode-se dizer que o argumento é simplista e que a metamorfose do velho milionário só acontece nos filmes. Pior, pode ficar a sensação de que o dinheiro é irrelevante e não se deve invejar quem o tem, porque é fonte de infelicidade e de problemas. Não me parece que seja essa a intenção de Sirk, atendendo à sua obra anterior e posterior. A utilização da cor ainda não cria o ambiente depuradamente artificial que tanto encantaria nos seus filmes posteriores, embora se note já um predomínio dos tons vivos. O elenco de actores é sóbrio e seguro, na linha do registo ligeiro que caracteriza a comédia americana, com destaque para o veterano Charles Coburn no papel do protagonista e para a presença de Rock Hudson que se tornaria um habitué de grande parte dos seus filmes posteriores. 
Pessoalmente, prefiro No Room For Groom a este Has Anybody Seen My Gal. Isto não significa que se trate de um filme desprovido de interesse. Não está, obviamente, entre os seus melhores, mas nenhum dos incondicionais do cineasta alemão o vai querer perder.
* Texto de Jorge Saraiva.

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terça-feira, 18 de abril de 2017

O Noivo Não Tem Quarto (No Room for the Groom) 1952

O Noivo Não Tem Quarto (mais um discutível aportuguesamento do título original No Room For Groom) é um decidido passo de Douglas Sirk no caminho da comédia que ainda não tinha surgido de forma explícita nas suas obras anteriores. Aliás o seu filme seguinte, Has Anybody Seen My Gal, lançado no mesmo ano, vai também na mesma direcção.
 No Room For Groom é uma clássica comédia americana. Dois namorados casam em segredo em Las Vegas contra a vontade da mãe da noiva. Na noite de núpcias, o noivo, que só tinha essa noite disponível dado que estava a cumprir o serviço militar, contrai varicela e é hospitalizado sem poder consumar o casamento. Quando regressa à casa que herdou do seu pai, descobre que toda a família da sua mulher se instalou em sua casa e que a ambicionada privacidade é uma miragem. Durante grande parte do filme, não há grandes novidades relativamente aos cânones tradicionais das comédias mainstream de Hollywood: algumas personagens ingénuas (sobretudo o protagonista), outras indecisas (a noiva, dividida entre a mãe e o marido), outras oportunistas e dissimulados (a família e particularmente a mãe da noiva) e algumas gananciosas (o patrão da noiva). Abundam os segredos não revelados que geram situações equívocas e cómicas, com o noivo a procurar desesperadamente estar a sós com a sua mulher e a aparecer sempre qualquer coisa que entrava essa possibilidade. O que torna o filme em algo de particularmente interessante é a oposição entre o noivo e o patrão da noiva. Embora se trate da adaptação da novela My True Love de Darwin Teilhet, este tipo de oposição, consubstancia duas visões distintas do mundo, muito típica no universo de Sirk. De um lado está um jovem que ambiciona uma vida simples, onde o dinheiro não é importante e que quer preservar as tradições familiares e locais, através da manutenção da sua casa e do cultivo das vinhas da sua propriedade; do outro, o patrão da noiva, que construiu uma cimenteira que apesar de dar emprego a muitas pessoas (entre as quais a numerosa família da noiva), acha que o dinheiro pode comprar tudo, incluindo a dignidade das pessoas e até o próprio amor. Esta crítica a uma sociedade em que o dinheiro é a única coisa importante, mais do que uma denúncia do capitalismo, deve ser entendida como uma crítica moral, ao comportamento das pessoas, designadamente ao seu egoísmo e ao seu desprezo pelos valores mais importantes da vida. Ao ver No Room For Groom, senti-me inevitavelmente transportado para os filmes de Frank Capra, que, em muitos aspectos, influenciou directamente o próprio Sirk. Mr. Deeds Goes To Town (1936), Meet John Doe (1941), It`s A Wonderful Life (1946) e, sobretudo, American Madness (1932) representam um outro american way of life, bem diferente daquele que é construído pela ideia do self made man, cujos méritos são avaliados pelo grau de riqueza obtido. O filme de Sirk segue nessa linha: muito mais importante do que o dinheiro, é a defesa de um estilo de vida simples, onde predomina a sinceridade dos afectos e a proximidade das pessoas, numa via que mantenha as tradições da vivência comunitária. Esta visão ingénua, a contracorrente da ideologia dominante, é, sem dúvida o ponto mais forte do filme, tal como tinha sucedido com os filmes de Capra. 
É evidente que No Room For Groom não se encontra entre os melhores filmes feitos por Douglas Sirk. Mas essa capacidade de fazer de uma simples comédia que poderia ser entendida como um exercício frívolo e superficial, num filme com uma mensagem implícita que nos faz reflectir. E isso salva-o da vulgaridade. 
* Texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 17 de abril de 2017

E... Deus Não Dorme (Thunder on the Hill) 1951

No início da década de 50, Sirk começava a construir a pulso uma sólida reputação em Hollywood. É certo que, apesar da sua irredutibilidade, o cineasta ainda não se tinha especializado nos sumptuosos melodramas que o tornariam conhecido. Nessa altura abordava uma pluralidade de estilos, alguns com resultados francamente duvidosos. Em 1951, numa produção frenética, assinou três longas metragens: para além de Deus Não Dorme (Thunder on the Hill), veriam ainda a luz do dia, Jogar Perder e Ganhar (The Lady Pays Off) e os Pais Vão Casar (Week-End with the Father) 
Ao contrário do que o título indica, Deus Não Dorme (aportuguesamento discutível do original Thunder on the Hill), o filme só marginalmente aborda questões de natureza religiosa. Isto mesmo tendo em conta que praticamente toda acção decorre num convento hospital dirigido por freiras, sendo quase integralmente rodado em estúdio. Há uma boa razão para que tal aconteça e que decorre do argumento adaptado a partir de uma peça de Oscar Saul e Andrew Solt: uma tempestade isola todos uma pequena aldeia inglesa nos arredores de Norwich, cujos habitantes acabam por se refugiar no convento local que funciona igualmente como hospital. Mas entre os refugiados, há uma mulher com uma situação particular, já que após julgamento é considerada culpada da morte do irmão e condenada à forca. Só que o isolamento da aldeia, impede-a de seguir para Norwich, enquanto as estradas não estiverem transitáveis. Sirk, de imediato, faz-nos crer que estamos em presença de um erro judicial, que irá condenar uma inocente e deixar um culpado impune. Ao longo dos dias em que a condenada aguarda no convento, vai-se estabelecendo uma relação de cumplicidade entre a prisioneira e uma das freiras, que, contra todas as evidências, vai acreditar na sua inocência. Trata-se de um caso de pura intuição feminina que a persistência virá a confirmar com factos. A irmã Bonaventura vai desafiar todas as leis e regulamentos, recebendo a hostilidade dos outros refugiados, a suspeita da polícia e a repreensão da sua superiora. E embora haja já elementos melodramáticos no contexto do filme, o mesmo acaba por se transformar num noir, situação completamente inesperada se tivermos em conta o local onde a acção se desenrola. Afinal se a condenada não é responsável pela morte, quem é que terá sido? E porquê? A realização de Sirk é uma afirmação de sobriedade: nada existe de acessório e muito menos de supérfluo. O ritmo é rápido como sucede na boa tradição do período dourado do cinema americano. Os dramas psicológicos das personagens (sobretudo da irmã Bonaventura, dividida entre a estrita obediência hierárquica e o remorso pela morte prematura de uma irmã que lhe atormenta a consciência) e a transformação progressiva das mesmas, remetem para o universo sirkiano. A direcção de actores é magnífica, com destaque para o desempenho de Claudette Colbert no papel da principal protagonista. 
 Foi um dos filmes mais baratos de Sirk com um orçamento a rondar os 2,5 milhões de dólares. O que prova, hoje como ontem, que não são precisos grandes meios para se fazer grandes filmes. Antes dos melodramas famosos (a partir de Magnificent Obsession de 1954), já Douglas Sirk nos tinha deixado um conjunto de obras relevantes. E esta é, sem dúvida, uma das melhores.
*Texto de Jorge Saraiva.

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sábado, 15 de abril de 2017

Liberdade Vigiada (Shockproof) 1949

Tal como em Lured, Liberdade Vigiada (Shockproof) prossegue a incursão de Douglas Sirk pelos filmes noir. Acrescenta-lhe o tom melodramático de forma vincada e também uma incursão pelos temas sociais. 
Shockproof parte de uma história de Samuel Fuller que já tinha uma sólida reputação enquanto argumentista antes de enveredar pela realização. As marcas do cineasta americano estão bem presentes neste filme. Começa de imediato pelo primeiro contacto entre as duas personagens principais do filme Griff Marat (Cornel Wilde) e Jenny Marsh (Patricia Knight) sobre as condições de liberdade condicional a que ela está sujeita. As mesmas são duríssimas e a sua violação implica o regresso à prisão. Este tom directo e seco não se coaduna particularmente com o estilo de Sirk, mais subtil e elíptico. Todo o filme gira em torno de um triângulo amoroso entre um agente de acompanhamento de pessoas em liberdade condicional, uma ex-reclusa acusada de homicídio e o seu namorado de reputação mais que duvidosa, por quem ela tinha morto um homem e que a levaram à prisão. A personagem feminina é claramente o centro de todo o filme, porque a sua visão do mundo e das duas personagens masculinas que a rodeiam vai-se alterando com o tempo. Esta ideia de transformação pessoal a partir das experiências de vida é muito típica nos filmes de Sirk dos anos 50. No entanto, nesta visão maniqueísta em que Jenny está colocada, entre o bem representado por Griff e o mal de Harry, o seu percurso nunca é linear. Assistimos de forma deliciada aos seus avanços e recuos, às suas mentiras, ao seu jogo duplo, às constantes vacilações que só são dissipadas numa fase muito avançada do filme. Mas a ideia forte parece ser a prevalência do amor sobre tudo o mais; no caso de Jenny sobre a vida confortável e o dinheiro, ainda que obtido de forma pouco lícita; no caso de Griff, o amor predomina sobre a família, a profissão e a própria lei. A transformação de um acompanhante de liberdade condicional, que recita as leis de cor e que tem aspirações profissionais, num foragido que se casa desafiando a lei e que se torna num proscrito por ajudar uma criminosa, é, pese o seu simplismo, o momento mais comovente do filme. Parece que a ideia inicial de Fuller era levar esta ruptura até às últimas consequências. Griff revoltar-se-ia de forma violenta contra um sistema desumano que o mantém afastado do seu grande amor. Isto era demasiado para aquilo que o sistema de Hollywood poderia permitir. O filme não poderia terminar de forma tão anti-sistémica. Por isso teve que ser contratada uma nova argumentista (Helen Deutsch) para arranjar um outro desfecho. O final desconchavado e incoerente, em que os amantes são salvos de um desenlace infeliz pelo mau da fita, num arroubo de arrependimento, surge como o seu calcanhar de Aquiles. Apesar de só ter lido este episódio da reformulação do argumento depois de ter visto o filme, o mesmo parece-me incoerente com o decorrer da sua própria trama, o que dramaticamente o desvaloriza. 
Poderia ter sido o melhor Sirk dos anos 40. Tinha lá tudo: o noir, o melodrama, a questão social da reinserção de uma ex-reclusa. Não sei se a conclusão do guião original de Fuller seria o ideal. Mas não custa a adivinhar de que seria muito mais credível do que aquele que passou à posteridade.
* Texto de Jorge Saraiva.

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sexta-feira, 14 de abril de 2017

Sonha Meu Amor (Sleep, My Love) 1948

Sonha Meu Amor (Sleep My Love) é a mais deliberada incursão de Douglas Sirk no filme noir até à data. Trata-se da adaptação do romance de Leo Rosten feita pelo próprio e por St. Clair McKelway e conta com Claudette Colbert, então uma estrela confirmada em Hollywood (já com 45 anos), no papel de protagonista principal.
A primeira sensação que se tem ao ver este filme, é que Sirk parece claramente influenciado pelos filmes de suspense que constituíam uma grande parte do melhor cinema americano da época. Em particular a «presença» de Alfred Hitchcock parece evidente, particularmente de A casa Encantada (Spellbound). Essa influência torna-se evidente ao destacar as questões da memória que eram centrais no filme de Hitchcock e que aqui desempenham igualmente um papel relevante, assim como a catalogação da personagem na lista de doentes do foro psicológico a precisar de tratamento. Uma mulher de Nova Iorque acorda num comboio para Boston, sem saber porque é que está ali, nem ter nenhuma recordação do seu passado recente e dos motivos que a levaram a fazer essa viagem. Não se trata de uma amnésia total, como acontece com o protagonista de Spellbound, mas apenas das últimas horas. Depois, há aqui toda a habitual trama de mistério que envolve este tipo de filmes, onde as coisas são sempre diferentes do que inicialmente parecem. Há todas as voltas e reviravoltas que levam o espectador a mudar constantemente o sua posição afectiva perante as personagens. Estamos perante um triângulo amoroso que não aparece de forma declarada: no centro está uma mulher que não é feliz no seu casamento e que atribui as causas do seu infortúnio à misteriosa doença que a psiquiatria não consegue curar; do outro, temos um marido, aparentemente dedicado, que se diz vítima dos ataques de loucura da esposa, mas que por amor se sacrifica e que permanece apaixonado; finalmente temos o intruso que se apaixona pela mulher e que desconfia das causas da doença da mulher que ama e tenta deslindar o caso. Conseguimos rapidamente perceber que o suspense se resolve com uma relativa rapidez, quando ficam claras que as boas intenções do marido são falsas e que por trás da sua aparente solicitude, está uma tentativa de levar a mulher a cometer suicídio ou a morrer de causas aparentemente naturais. E, sempre tomando Hitchcock como ponto de referência, este parece-me ser o calcanhar de Aquiles de Sleep My Love. Hitchcock consegue manter o suspense praticamente até à ultima cena, com desfechos imprevisíveis, frequentemente encontrando um sentido lógico próprio que contraria o que parecia previamente estipulado. Este filme de Sirk resolve o mistério demasiado depressa. Muito antes do final sabemos quem é culpado e quem é inocente e toda a sua parte final é mais de acção do que de mistério. O desmascaramento da avidez do marido pelo dinheiro da esposa e a atitude do falso psiquiatra com ele conluiado, surgem demasiado cedo. Talvez tenha sido esse aspecto que levou um crítico da época a afirmar que o filme é melhor pelas atmosferas criadas do que pelo próprio argumento, o que me parece ser inteiramente justo. Há pormenores de realização absolutamente deliciosos que trazem a marca inconfundível de Douglas Sirk: os espelhos, as janelas e as portas, o contraste entre claro e escuro, as expressões faciais das personagens. 
Não é dos melhores filmes de Sirk nem é dos filmes noir que a história recordará como um dos seus mais emblemáticos. Mas não deixa de ser um Sirk que se vê com muito agrado.
* Texto do Jorge Saraiva.

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terça-feira, 11 de abril de 2017

Oito Desaparecidas (Lured) 1947

Oito Desaparecidas (Lured) marca de uma forma declarada a entrada de Sirk no filme noir, numa espécie de thriller com laivos de Hitchcock. Retoma a colaboração entre o realizador e George Sanders que se iniciara em Escândalo em Paris, o seu filme anterior. 
O filme é um remake de Pieges de Robert Siodmak, realizado em França em 1939. Como não tive oportunidade de o ver, não tenho possibilidades de fazer comparações. No caso vertente de Lured, trata-se de mais uma obra subestimada de Douglas Sirk, um pouco como sucedeu à maioria das suas realizações da década de 40, ofuscadas pelos melodramas dos anos seguintes e que se tornariam nos seus filmes mais populares e conhecidos. Mas foi exactamente o sucesso desses melodramas que abriu portas para o interesse pelos seus filmes anteriores, tanto da sua fase alemã, como dos seus primórdios em Hollywood que foi recuperada para este ciclo. Lured é um desses casos. Referi Hitchcock e o paralelismo com alguns dos seus filmes mais famosos desse período e a comparação não me parece descabida, tanto no conteúdo, como em alguns aspectos formais. Em Londres somos introduzidos a um serial killer, uma espécie de nova versão de Jack o Estripador, aqui com requintes poéticos que remetem para a obsessão pela morte de Charles Baudelaire. Há igualmente todo o processo para a polícia desvendar o possível criminoso, com todos os ingredientes comuns neste tipo de filmes: mistério, um desenvolvimento do argumento que nos leva a caminhar numa determinada direcção, para depois percebermos que as pistas são falsas e dão-nos abertura para percebermos quem de facto é o verdadeiro responsável. Hitchcock é imbatível neste tipo de filmes, mas Sirk não lhe fica muito atrás. O filme é ágil e desenvolto, com um ritmo muito vivo e sem quebras, prendendo de imediato a atenção do espectador. Mais na década 40 do que na seguinte, Sirk não ficou preso a um único tipo de filmes, movimentando-se com versatilidade por diferentes géneros. A direcção de actores é, como de costume, excelente, com a particularidade do papel principal pertencer a uma mulher, no caso, Lucille Ball. A cena mais interessante do filme, no entanto, deve-se à presença do mítico Boris Karloff, o célebre actor britânico de filmes de terror, sobretudo conhecido pelos seus papéis em filmes como Frankenstein, Scarface ou The Lost Patrol. Embora aqui tenha apenas um pequeno papel e numa lateralização ao contexto geral do argumento, temos um Karloff ao nível do que o conhecemos em muitas das personagens que encarnou: estranho, alucinado e completamente distante da realidade. 
Lured teve reacções mistas na altura da sua saída. Recentemente foi alvo de uma edição em blu-ray num pack que inclui o anterior Escândalo em Paris. Alguns críticos consideraram-no o menos interessante dos dois, referindo o mimetismo face à versão original. Não sei
se partilho essa opinião, uma vez que gosto muito de ambos. Sem ser uma obra prima, merece um visionamento atento, sobretudo para se descobrir outra faceta do realizador, normalmente menos conhecida. 
*texto de Jorge Saraiva.

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segunda-feira, 10 de abril de 2017

Escândalo em Paris (A Scandal in Paris) 1946

Embora se trate um argumento original, Escândalo em Paris baseia-se livremente nas memórias de François- Eugène Vidocq, um homem com um percurso extraordinário do período do bonapartismo. É um Sirk vintage, embora muito diferente dos melodramas que o tornaram famoso na década seguinte. 
Filmado num preto e branco impecável, a característica principal de Escândalo em Paris é que se trata de uma comédia. Claro que há substanciais diferenças relativamente aos seus filmes mais famosos, mas há igualmente importantes linhas de continuidade que não devem ser menosprezadas. Em primeiro lugar, a capacidade de escrever ou encontrar argumentos escorreitos e elegantes; a extrema atenção a todos os pormenores, numa reconstituição histórica sem falhas: um trabalho de direcção de actores muito bom; e, finalmente, é que os filmes de Sirk nunca são tão inocentes como à partida podem parecer. Nesta comédia que evoca o boulevard francês, embora seja falada em inglês e inserida na sua produção de Hollywood, a ligeireza do tema, as reviravoltas das personagens, o tom bem humorado da narrativa na primeira pessoa, não pode ofuscar que há um ladrão que usa nomes falsos e que para poder melhor dar o seu golpe final, se transforma em inspector da polícia. Das masmorras onde o filme começa, transforma-se num cidadão incorrupto, acima de qualquer suspeita. Esta ascensão meteórica revela de uma forma corrosiva e satírica a vulnerabilidade da polícia, que acolhe no seu seio, um dos mais procurados ladrões. Ridiculariza a ineficiência da polícia, enquanto que elogia a habilidade dos ladrões. Basta ter astúcia e ser eloquente. E embora a localização precisa nos reenvie para o final do século XVIII, seguramente as generalizações para outras épocas e lugares, não só são possíveis, como totalmente legítimas. Provavelmente um Sirk posterior não teria redimido a personagem central, levando-o ao arrependimento. Prosseguiria a farsa até ao final. Mas isto é pura especulação. E depois há George Sanders, um actor que nem sempre conseguiu ter papéis adequados ao seu grande talento, que aqui tem um dos seus melhores desempenhos, enquanto sedutor irresistível, de ar cândido e voz doce, como se fosse uma espécies de Casanova. Há música de Hans Eisler (que colaborou com Fritz Lang e Brecht, por exemplo) e também uma subtil paródia a Marlene Dietrich na cena do cabaré. 
Esta comédia tem um toque de malícia que remete de forma directa para o seu compatriota Ernst Lubitsch. Para alguns poderá não ser (e não é) uma das obras primas que Sirk assinou, sobretudo na década seguinte, mas é um dos filmes favoritos do próprio realizador. Resgata igualmente a sua primeira fase nos Estados Unidos, geralmente menos conhecida do que os seus grandes clássicos dos anos cinquenta e que normalmente é considerada como menor. É evidente que nenhum «sirkiano» o vai querer perder.
*Texto de Jorge Saraiva.

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sábado, 8 de abril de 2017

Tempestade de Verão (Summer Storm) 1944

Tempestade de Verão (Summer Storm) adapta uma novela de Anton Tchekov de 1884, com argumento de Rowland Leigh. É o seu segundo filme feito nos EUA, após a Loucura de Hitler (1943) e a sua primeira incursão séria no melodrama que o viria a tornar famoso, sobretudo durante a década seguinte 
Para quem está familiarizado sobretudo com a obra de Sirk da década seguinte, estranha de imediato a ausência daquilo que viria a ser uma marca distintiva da sua herança cinematográfica: a cor. Mas, de resto, está lá quase tudo que faria dele um dos cineastas mais originais de toda a história do cinema; os amores transviados, as reviravoltas inesperadas da vida, a ascensão e a decadência, a perversidade das personagens e, sobretudo, a dimensão trágica da vida. O argumento é relativamente complexo, seguramente devido ao texto original de Tchekov, por vezes assemelhando-se a certas tramas de Hitchcock, pelo rumo inesperado das decisões de certas personagens. Não é de imediato compreensível a razão porque o argumento resolve situar o filme em 1919, dois anos depois da Revolução de Outubro, quando o romance original foi escrito em 1884. Até, porque havendo uma passagem quase final que relata a miséria em que caiu uma das personagens centrais oriunda da aristocracia após a revolução, o filme nunca ganha contornos políticos. O que é verdadeiramente surpreendente relativamente aos seus filmes posteriores, é a perversidade da personagem central, desempenhada por uma mulher oriunda de meios sociais baixos e que usa a sua grande beleza como um trampolim para poder ascender socialmente. Olga surge como o exemplo da mulher sem escrúpulos que troca o amor pelo dinheiro, sendo vista como o exemplo acabado de alguém determinado a não olhar a meios para alcançar os seus fins, enredando-se em jogos de sedução opaca e dupla. Esse sentido de sedução perversa é a chave para a análise do filme e para o estabelecimento de comparações com a sua obra posterior. Embora não haja uma espécie de maniqueísmo de género nos filmes de Sirk, todo o enredo se desenvolve para tomar partido pelas personagens masculinas: Volsky, o aristocrata de meia idade, levemente cabotino, habituado a ser obedecido, mas que se perde de amores e passa a ser manipulado por uma rapariga do povo; e o jovem juiz Fedor com casamento apalavrado e que o desfaz num ápice, para poder entregar-se à sua nova paixão. Neste triângulo instável em que as personagens masculinas são amigas, mas desconhecem os sentimentos que cada uma nutre pela mesma mulher, reside a razão que faz deste filme uma obra absolutamente notável. Sirk dirige com mestria George Sanders, Edward Everett Norton e, sobretudo Linda Darnell, uma actriz muito talentosa e que se tinha perdido em filmes menores e que normalmente estava associada a personagens inocentes e puras. 
O filme foi o primeiro grande sucesso de bilheteira para Sirk, o que não deixa de ser um facto assinalável, para quem estava a dar os primeiros passos na sua carreira americana. A crítica da época foi também bastante favorável. Posteriormente, sobretudo após a sua recente edição em dvd em cópia restaurada, as opiniões têm-se dividido entre os que a consideram um filme relativamente menor no conjunto da sua obra e aqueles que vêem em Tempestade de Verão, um primeiro e firme sinal da sua grandeza posterior. Pessoalmente, inclino-me mais para esta segunda posição. O sentido trágico da vida está aqui bem presente e essa é uma das melhores dádivas que o cinema nos pode dar.
*Texto de Jorge Saraiva

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sexta-feira, 7 de abril de 2017

O Carrasco de Hitler (Hitler`s Madman) 1943

"O Carrasco de Hitler" (Hitler`s Madman) é o primeiro filme de Douglas Sirk realizado nos Estados Unidos. O cineasta já tinha uma sólida reputação no cinema europeu, com cerca de uma dezena de filmes por si dirigidos, mas tinha abandonado o seu país por motivos políticos, em particular pela facto da sua esposa ser judia. No entanto, ao contrário de Fritz Lang, que seguiu um percurso idêntico e que começou quase de imediato a dirigir filmes, Sirk não tinha o prestígio já alcançado pela realizador de Metropolis. Embora depois de ter saído da Alemanha em 1937 ainda tenha filmado na Suiça e na Holanda, só teve oportunidade de se estrear nos EUA em 1943. 
"O Carrasco de Hitler", poderia ser confundido com mais um filme de propaganda de guerra, a que muitos cineastas americanos aderiram, no desejo de mobilizar a população americana para o esforço de derrotar Hitler. No entanto, é muito mais do que isso. O filme baseia-se em factos reais acontecidos pouco tempo antes: o assassinato do principal responsável alemão na Checoslováquia ocupada pelos nazis, por força de um atentado da resistência contra a ocupação e o massacre ocorrido da pequena aldeia de Lidice (a trinta quilómetros de Praga) com o fuzilamento de todos os homens com mais de 16 anos, a deportação de todas as mulheres, o internamento compulsivo de todas as crianças em reformatórios e o incêndio subsequente da aldeia que ficou praticamente reduzida a cinzas. Como se tornaria habitual nos seus filmes posteriores, existem vários níveis de leitura do filme. Se por um lado, ressalta de imediato um filme de agitação e propaganda, mostrando a arbitrariedade e a bestialidade das forças ocupantes nazis, por outro, permite uma análise mais profunda sobre as formas de resistir aos ocupantes. Essas possibilidades discutem-se numa reunião clandestina em que face à ousadia de um exilado em Inglaterra que é lançado sobre a aldeia em pára-quedas, se opõe uma espécie de resistência pacífica com medo de retaliação das tropas nazis. Progressivamente, vamos assistindo a uma maior vontade de intervenção da resistência directamente proporcional ao aumento do terror e da arbitrariedade por parte das forças invasoras. É neste contexto que surge outra ideia sempre forte nos filmes posteriores de Sirk: a metamorfose de pensamentos e comportamentos das personagens principais, cujas posições se transformam em função da alteração das situações em que vivem. Neste caso a de Jan Hanka (desempenhado pelo veterano actor Ralph Morgan) que é o homem mais rico da aldeia e que defende uma espécie de não beligerância com os alemães, que por muitos é entendido como uma espécie de colaboração passiva com os ocupantes, o que lhe granjeia uma certa simpatia junto destes. Será a persistência da sua filha e o acumular de barbaridades que o fará evoluir gradualmente para uma oposição mais consequente à ocupação. Embora haja algum simplismo no argumento, muito típico deste tipo de filmes, O Carrasco de Hitler vai muito para além de uma simples retórica primária anti-nazi. O facto do filme não ter um happy end, algo que pouco comum na época, reforça a ideia de credibilidade ajudada por uma realização discreta e eficaz, (que em certos aspectos apresenta os factos de forma particularmente crua e sem qualquer subtileza), longe ainda do virtuosismo posterior de que Sirk daria tantas provas. 
Não é um dos seus melhores filmes, mas está longe de ser uma mera curiosidade. Se as questões sociais e políticas estiveram quase sempre presentes nos seus filmes, ainda que muitas vezes de forma oblíqua, aqui, face à natureza do tema, surgem de forma explícita. É preciso juntar toda a gente para combater a praga que se abateu sobre o seu país natal e que se espalhou pelo mundo. Este é o principal mérito de "O Carrasco de Hitler". 
*Texto de Jorge Saraiva.

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quinta-feira, 6 de abril de 2017

Douglas Sirk - Imitações da Vida

"Eu tinha vagamente ouvido falar de um cineasta alemão que fugiu do regime nazi e se radicou nos EUA no final dos anos 30. Tinha lido qualquer coisa sobre o facto de nos anos 50 ter feito melodramas populares que foram sucessos de bilheteira, mas não demoveram os críticos mais empedernidos e exigentes. Não liguei muito a isso. De facto, o melodrama nunca foi um género que me entusiasmasse particularmente.
Um dia, depois de ver o Far From Heaven de Todd Haynes, li uma entrevista em que o cineasta americano se referia a Douglas Sirk e particularmente ao filme All That Heaven Allows (Tudo O Que o Céu Permite). A argumentação de Haynes era de tal modo apelativa e encomiástica relativamente ao génio de Sirk, que não resisti e fui tentar perceber os motivos de tanta admiração. Tive a sorte de começar pela obra prima do melodrama social, Imitação de Vida. e desde aí nunca mais parei.
 A reabilitação artística de Sirk é, em grande parte, devedora do trabalho pioneiro de Serge Daney que nos Cahiers du Cinema chamou à atenção para uma nova geração de cinéfilos para as singularidades da sua obra. Em primeiro lugar, a dimensão absolutamente deslumbrante da utilização da cor. Com o cinema de Sirk a utilização do colorido passou a ser uma parte integrante e decisiva da criação artística e não apenas um mero recurso técnico como acontecia na generalidade dos filmes até então. A partir da década de 70, uma nova revisão da sua obra, particularmente dos melodramas por si realizados nos anos 50, levou ao abandono duma visão simplista de filmes feitos exclusivamente para apelar aos sentimentos dos espectadores. Uma análise cuidada dos seus filmes foi revelando detalhes e perspectivas bastante menos óbvias do que uma visão apressada poderia conduzir. Na forma por vezes caricatural como se desenrolam as relações humanas no universo de Sirk, na dimensão frequentemente excessivamente teatral (Sirk começou a sua carreira na Alemanha, precisamente nas artes do palco), ocultava-se um apurado sentido metafórico. Não só Sirk, não fez cedências a um sentimentalismo rasteiro que é tão comum no melodrama, como ainda lhe acrescentou uma dimensão crítica da sociedade americana, numa época marcada por grande intransigência e dogmatismo ideológico (viva-se em plena guerra fria e qualquer posição crítica do funcionamento da sociedade poderia ser entendido como um gesto de anti-patriotismo, agravado ainda pelo facto de se tratar de um realizador alemão). O apogeu deste sentido crítico, talvez esteja em Imitação de Vida ao abordar de forma explícita o racismo, na altura tema tabu na sociedade americana. Mas, de forma geral, há sempre um olhar acerado sobre o funcionamento de uma sociedade onde as relações humanas são condicionadas, ou mesmo desvirtuadas, pelas diferenças sociais. Esta coragem revelada por Sirk, que em certos meios lhe justificou a designação um pouco exagerada de «realizador esquerdista», não é muito comum no cinema de Hollywood. Provavelmente, o termo de comparação mais óbvio é com o Frank Capra dos décadas de 30 e 40, embora sem o mesmo grau de romantismo e de confiança nas instituições americanas que o autor de It´s a Wonderful Life revelava. 
Hoje, Douglas Sirk continua a ser mais apreciado junto de algumas comunidades cinéfilas do que do público em geral. Tarantino citou-o em Pulp Fiction. Fassbinder amava o seu cinema como o de nenhum outro realizador e o Medo Come A Alma é uma influência directa reconhecida pelo próprio. Mas com referências directas de Godard, Almodovar, Lynch, ou Wong Kar-Wai (quando penso em Disponível Para Amar é impossível não pensar em Escrito No Vento), ou de filmes onde a cinefilia melodramática tem uma fonte de inspiração óbvia em Sirk, como Melo de Alain Resnais, tornaram-no numa referência incontornável de toda a história do cinema. E, no entanto, grande parte da sua obra, continua a ser desconhecida de muitos cinéfilos. 
 Este ciclo, não integral, mas bastante abrangente, procurará colmatar esta lacuna, prestando assim um acto de justiça à obra maravilhosa de Douglas Sirk. Espero que possam desfrutar plenamente"

É com este texto do professor Jorge Saraiva que damos inicio ao ciclo "Douglas Sirk - Imitações da Vida". 22 filmes, todos referentes ao período de Hollywood, sempre com textos do Jorge. Primeiro filme a partir de sexta-feira.


domingo, 2 de abril de 2017


A Senda dos Elefantes (Elephant Walk) 1954

Ruth Wiley (Elizabeth Taylor) é uma jovem mulher recém-casada, que viaja da Inglaterra até ao Ceilão para encontrar nativos, o seu marido John (Peter Finch) e uma imensa plantação de chá de propriedade dele, chamada Caminho dos Elefantes. Milionário e ainda jovem, John vive num luxuoso bangaló construído pelo seu pai no terreno, que servia de passagem para os elefantes da ilha até às fontes de água. Ruth tenta adaptar-se a este ambiente totalmente estranho, enquanto sofre constantes ameaças dos animais e sente a indiferença dos amigos de John. Ao seu lado ela tem apenas Dick Carver (Dana Andrews), o administrador da propriedade, que se apaixona pela sua determinação e delicadeza. Mas o pior ainda está por vir, com a chegada de uma epidemia de cólera que ameaça todos os habitantes da ilha.
"Elephant Walk" (1954) é um filme que mal é recordado hoje em dia, mas foi na altura do seu lançamento considerado o filme mais caro de sempre da Paramont, acabando com uns custos totais de 3 milhões de dólares. Culpe-se uma produção acidentada, que teve vários precalços, incluindo os exteriores no Ceilão (agora Sri Lanka) que se situavam a meio mundo de distância, e uma estrela de Hollywood que teve um colapso mental a meio das filmagens, e teve de ser substituída por outra. A estrela era Vivien Leigh, e foi substituída por Elizabeth Taylor. O produtor Irving Asher queria Laurence Olivier e Vivien Leigh para os papéis principais, mas Olivier não gostou do argumento, recusou e incentivou a sua esposa a fazer o mesmo. Quando ela assinou, apesar das objecções do marido, Olivier recomendou Peter Finch para o papel principal, que ainda era um desconhecido de Hollywood, mas era seu protegido. Durante as filmagens Finch e Leigh envolveram-se num caso, que acabaria por levar ao colapso mental da actriz. Por causa destes acontecimentos, Leigh teve de ser substituída por Elizabeth Taylor, ainda com 21 anos, e 20 anos mais jovem que a primeira actriz. Como era uma actriz da MGM, esta aquisição acabaria por ser bem paga pela Paramont.
Todos estes precalços não seriam muito favoráveis ao filme, nem ao seu realizador William Dieterle, que já tinha a atravessar uma fase menos criativa. Daqui para a frente só faria mais duas produções em Hollywood para depois se retirar para a Europa. Apesar de nunca ter sido colocado na lista negra do MaCartismo, um filme seu, "Blockade" foi considerado suspeito, assim como algumas pessoas com quem tinha trabalhado também o eram. Ele e sua esposa, nos anos trinta, tinham ajudado muita gente a fugir da Alemanha Nazi, muitas delas da extrema esquerda. Numa entrevista Dieterle disse: "Embora eu nunca tenha tido conhecimento de alguma lista negra, eu devo ter estado em algum tipo de lista cinzenta, porque durante alguns anos nunca consegui trabalho". Assim termina este ciclo.

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sábado, 1 de abril de 2017

Salomé (Salomé) 1953

O Rei Herodes é o rei da Galileia, e faz do governo um antro de orgia, injustiça e corrupção. João Batista e os seguidores de Jesus lutam contra ele, denunciando as suas atrocidades. A bela Salomé, filha da esposa de Herodes, vive com eles. A sua mãe, Herodias, pede a cabeça de João Baptista, mas não é ouvida, pois Herodes teme a acção popular. Inconformada, Herodias irá usar a sua filha Salomé para conseguir o que quer.
A história bíblica de Salomé, a entrada adolescente do rei Herodes que realizou a dança dos sete véus em troca da cabeça de João Baptista, foi filmada muitas vezes, mais notavelmente numa versão muda de 1923 interpretada por Alla Nazimova, baseada nos desenhos de Aubrey Beardsley para a peça de Oscar Wilde. "Salomé" (1953), interpretado por Rita Hayworth, é uma versão mais mainstream que as versões anteriores, e é mais deslumbrante visualmente, por ter sido filmado num vivido Technicolor.  
O épico biblico tinha sido, mais ou menos, inventado nos anos 20, por Cecil B. DeMille, e teve um renascimento nos anos 50 com o aparecimento do Technicolor. O próprio DeMille iniciou este renascimento com "Samson and Delilah" (1949), e teve logo mais dois grandes êxitos com "Quo Vadis?" e "David and Bathsheba". No ano seguinte, o chefe da Columbia Harry Cohn estava à procura de um grande projecto para a sua estrela nº 1, Rita Hayworth. Jesse Lasky, Jr. que tinha escrito o argumento de "Samson and Delilah", e estava debaixo de contrato com a Columbia, sugeriu a história de Salomé. Mas Cohn não queria que a sua estrela interpretasse uma mulher malvada, e Lasky alterou a história bíblica, tornando a adolescente uma heroína simpática. Nesta versão de Salomé, a princesa dança para salvar João Baptista, e não para decapitá-lo, e é atraída por ele espiritualmente, e não fisicamente.
A publicidade para o filme vanglorizava-se que era "o primeiro épico biblico com todos os seus exteriores a serem filmados nos verdadeiros locais históricos". Isto não era de todo verdade, Dieterle e a sua equipa filmaram alguns exteriores no deserto de Israel, mas outros foram filmados no Palm Desert, na Califórnia, mas é um filme com uma aparência sumptuosa, graças à fotografia de Charles Lang. Algumas interpretações são notáveis, e o elenco é grandioso, como era habitual nestas grandes produções históricas: Rita Hayworth, Stewart Granger, Charles Laughton, Judith Anderson, Cedrick Hardwicke, entre outros.

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