sábado, 15 de abril de 2017

Liberdade Vigiada (Shockproof) 1949

Tal como em Lured, Liberdade Vigiada (Shockproof) prossegue a incursão de Douglas Sirk pelos filmes noir. Acrescenta-lhe o tom melodramático de forma vincada e também uma incursão pelos temas sociais. 
Shockproof parte de uma história de Samuel Fuller que já tinha uma sólida reputação enquanto argumentista antes de enveredar pela realização. As marcas do cineasta americano estão bem presentes neste filme. Começa de imediato pelo primeiro contacto entre as duas personagens principais do filme Griff Marat (Cornel Wilde) e Jenny Marsh (Patricia Knight) sobre as condições de liberdade condicional a que ela está sujeita. As mesmas são duríssimas e a sua violação implica o regresso à prisão. Este tom directo e seco não se coaduna particularmente com o estilo de Sirk, mais subtil e elíptico. Todo o filme gira em torno de um triângulo amoroso entre um agente de acompanhamento de pessoas em liberdade condicional, uma ex-reclusa acusada de homicídio e o seu namorado de reputação mais que duvidosa, por quem ela tinha morto um homem e que a levaram à prisão. A personagem feminina é claramente o centro de todo o filme, porque a sua visão do mundo e das duas personagens masculinas que a rodeiam vai-se alterando com o tempo. Esta ideia de transformação pessoal a partir das experiências de vida é muito típica nos filmes de Sirk dos anos 50. No entanto, nesta visão maniqueísta em que Jenny está colocada, entre o bem representado por Griff e o mal de Harry, o seu percurso nunca é linear. Assistimos de forma deliciada aos seus avanços e recuos, às suas mentiras, ao seu jogo duplo, às constantes vacilações que só são dissipadas numa fase muito avançada do filme. Mas a ideia forte parece ser a prevalência do amor sobre tudo o mais; no caso de Jenny sobre a vida confortável e o dinheiro, ainda que obtido de forma pouco lícita; no caso de Griff, o amor predomina sobre a família, a profissão e a própria lei. A transformação de um acompanhante de liberdade condicional, que recita as leis de cor e que tem aspirações profissionais, num foragido que se casa desafiando a lei e que se torna num proscrito por ajudar uma criminosa, é, pese o seu simplismo, o momento mais comovente do filme. Parece que a ideia inicial de Fuller era levar esta ruptura até às últimas consequências. Griff revoltar-se-ia de forma violenta contra um sistema desumano que o mantém afastado do seu grande amor. Isto era demasiado para aquilo que o sistema de Hollywood poderia permitir. O filme não poderia terminar de forma tão anti-sistémica. Por isso teve que ser contratada uma nova argumentista (Helen Deutsch) para arranjar um outro desfecho. O final desconchavado e incoerente, em que os amantes são salvos de um desenlace infeliz pelo mau da fita, num arroubo de arrependimento, surge como o seu calcanhar de Aquiles. Apesar de só ter lido este episódio da reformulação do argumento depois de ter visto o filme, o mesmo parece-me incoerente com o decorrer da sua própria trama, o que dramaticamente o desvaloriza. 
Poderia ter sido o melhor Sirk dos anos 40. Tinha lá tudo: o noir, o melodrama, a questão social da reinserção de uma ex-reclusa. Não sei se a conclusão do guião original de Fuller seria o ideal. Mas não custa a adivinhar de que seria muito mais credível do que aquele que passou à posteridade.
* Texto de Jorge Saraiva.

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